os últimos trinta anos, foram feitas cirurgias
inesquecíveis em um recurso vital para nós: o
ciclo das nossas águas. Além das centrais
hidrelétricas, pólos da vida industrial moderna
desde o princípio do século XX, foram feitas obras
de reversões de vazão ou derivações de bacias fluviais,
principalmente os reservatórios da Sabesp no
Rio Jaguari, acima de Bragança, e no Rio Atibaia,
acima de Nazaré. Portanto, na Serra da Mantiqueira.
Ao chamá-lo de Sistema Cantareira, dá-se
aos paulistanos a ilusão de que sua água provém da
serra deles, logo ali atrás da zona norte da capital e
de Guarulhos, e, com isso, omite-se o fato geográfico
elementar de que essas águas provêm da Mantiqueira,
quase na divisa entre São Paulo e Minas
Gerais, da nossa Serra, onde se formam o nosso rio,
o Jaguari-Piracicaba, e seu principal afluente, o Atibaia.
Numa das piores situações de estiagem, em
julho de 2000, a vazão natural dos dois rios na Serra
chegava a menos de 20 mil litros por segundo, a
Sabesp esvaziava os reservatórios mandando 30 mil
litros para a RMSP e nos concedia, benevolente, a
vazão mínima a que temos direito: apenas 3 mil
litros por segundo! Se isso ocorresse no Oriente
Médio, certamente já estaríamos convivendo com
mísseis, bombardeios e ataques armados, como
acontece nas Colinas de Golan, onde nasce o único
rio um pouco maior, o Jordão. Por aqui, no oriente
paulista, a empresa poderosa, uma das organizações
onde mais se faz política, sabe bem disto, conforme
disse seu vice-presidente Marsiglia Netto: “A região
da Bacia do Piracicaba continua crescendo e irá disputar
a água com a RMSP, então nós temos que buscar
outras alternativas. (...) A idéia da usina
reversível é muito promissora, de certa forma
resolve esta disputa que vai ocorrer no ano de 2010,
ou um pouco antes, com a região de Piracicaba”
(revista Saneamento Ambiental, jun./00, p. 33).
Ai de ti, Atibaia, pois, além desse rombo em
seu início, o ex-rio é sangrado de novo, para abastecer
Jundiaí, que fica em outra bacia; de novo, para
abastecer Campinas, Sumaré e Nova Odessa, que
desviam a maior parte dessas vazões para outras
bacias. Mais reversões: Indaiatuba desvia do Rio
Capivari-Mirim, a refinaria Replan e Paulínia desviam
do Rio Jaguari para o Atibaia...
Nem sabemos direito todas as consequências
disso tudo, mas sabemos que para nós, vizinhos e
usuários dos rios que foram sangrados, não têm sido
conseqüências benéficas e sabemos que já há outras
reversões sendo feitas e sendo anunciadas.
Fóssil-Dependência: uma difícil transição
do óleo grosso para o gás importado
Foram instalados pela Petrobrás, nos anos 70,
os dutos de óleo cru e derivados de petróleo ligando
São Sebastião e Guararema com Paulínia, ao longo
da via Dom Pedro, e ligando Paulínia com Barueri,
ao longo da via Bandeirantes. A refinaria Replan é
uma das maiores empresas do Estado, fornece derivados
de petróleo para vários Estados do Sudeste e
Centro-Oeste e tem a maior capacidade de processamento
de óleo cru das doze refinarias brasileiras.
Nos anos 90, foram feitos o oleoduto Osbra, para o
Norte, com bases de distribuição de derivados em
Ribeirão Preto, Triângulo Mineiro, Goiânia e Brasília,
e o gasoduto GasBol. O gás metano canalizado,
ou GN, vindo da Bolívia, das jazidas de empresas
estrangeiras, está sendo despachado desde meados
de 1999 por transportadoras estrangeiras em sociedade
com a Gaspetro/Petrobrás. O traçado desse
gasoduto passa por Santa Cruz de la Sierra,
Corumbá, Campo Grande e Bauru, entra na região
pela rota da via Washington Luís, perto de São Carlos,
Rio Claro e Limeira, até o entroncamento de
Paulínia – e daí saem o ramo sul, até Porto Alegre,
via Sorocaba e Curitiba, e a ligação com o gasoduto
Gaspal, vindo do Rio de Janeiro, em Guararema.
A distribuição do gás aos clientes finais ficará a
cargo da Comgás, recém-privatizada e retalhada em
grandes blocos regionais, com sócios estrangeiros
importantes, como a Shell e a Enron, entre outros.
Só que quanto mais o gás substituir o óleo
grosso, mais óleo grosso vai sobrar... e a Replan e
outras refinarias produzem cada vez mais resíduos
viscosos, já que os óleos crus brasileiros, do litoral
do Rio de Janeiro, têm teores altos desses resíduos,
20%, 30% ou mais. Um dos desfechos dessa difícil
equação seria se, realmente, o gás metano fosse
introduzido nos focos atuais de maior consumo
regional de combustíveis. Aí, vários dos atuais combustíveis
líquidos, mais pesados e mais poluentes,
como a gasolina, o óleo diesel e os óleos grossos,
poderiam ser complementados e até substituídos
pelo gás nos motores dos veículos, nas caldeiras e
nos fornos industriais. Se o gás metano fosse canalizado
nas áreas residenciais e de coletividades, poderia
ser queimado também nos fogões, fornos,
aquecedores e demais implementos domésticos e
reprodutivos. Proporcionalmente, haveria menos
fumaça, menos monóxido de carbono, menos gases
sulfurosos. Mas poderia haver mais hidrocarbonetos
no ar e mais emissões de gases nitrogenados,
portanto, maior formação de gás ozônio respirável
nos focos e à distância.
Pela lógica elementar, se forem acrescentados
novos grandes focos de queima de gás sem desativar
queimas de óleo grosso ou diesel, é claro que a poluição
aumentará. Se esses novos focos forem construídos
e operarem em alguns trechos da região, que já
são muito poluídos numa boa parte dos dias, é claro
que a insalubridade existente se agravará nesses locais
– e que novos locais próximos se tornarão insalubres.
O DOTE DA PRINCESA:
PARQUE INDUSTRIAL DE
PRIMEIRO MUNDO E BONS
MERCADOS CATIVOS
No mesmo período de trinta anos, a região
tornou-se uma das mais industrializadas e densas do
país, uma autêntica extensão humana e geoeconômica
de uma das maiores metrópoles do mundo, a
capital paulista, em direção ao seu rico interior,
como é sempre divulgado. A própria refinaria
Replan foi ampliada com várias fábricas novas,
foram construídas plantas químicas de grande e
médio porte pela Exxon, pela Shell, Cyanamid,
DuPont e tantas outras; a Rhodia, da antiga Fazenda
São Francisco, tornou-se o mais importante complexo
industrial de toda a empresa multinacional de
origem francesa. E mais: dezenas de indústrias farmacêuticas,
de produtos agroquímicos, metalúrgicas,
incluindo duas siderúrgicas (Villares-Eletrometal e
Belgo, ex-Dedini), as de celulose, papel e artefatos,
grandes e médias, como a Ripasa, a Champion, a
Rigesa, a VPC, a Klabin, a Bressler, as de fibras sintéticas,
sintéticas,
de pneus, além dos nichos regionais mais especializados,
os municípios e distritos onde pesam
muito as usinas de açúcar e de álcool, as espremedoras
de laranjas, as tecelagens, tinturarias e façonnages,
as fábricas de bebidas, as cerâmicas, as de
artefatos de fibra de vidro, as de fertilizantes e corretivos
minerais, as bijuterias, as fundições e tratamentos
térmicos e superficiais de peças metálicas.1
Nos últimos seis anos, desabrocharam também
as indústrias globalizadas modernas que, como
gostam de afirmar os seus arautos, foram atraídas–
na realidade, concretizando alianças entre os vitoriosos,
depois da virada política favorável aos estrangeiros
e ao capital industrial e financeiro, na era dos
governos Cardoso-Maciel –, e atraídas sempre com
alguma boa facilidade concedida pelas prefeituras e
câmaras. Por aí chegaram as montadoras japonesas
Toyota e Honda, a fábrica de motores da Volkswagen,
as multinacionais das autopeças em Mogi, em
Limeira, em Piracicaba, os novos nomes da era eletrônica
e das telecomunicações em Campinas, em
Jaguariúna etc.
Foram privatizadas as concessionárias de eletricidade,
de telecomunicações e algumas de água e
esgoto, as ferrovias, as rodovias – primeiro, as principais,
e, agora, também algumas ligações locais bem
freqüentadas –, numa verdadeira caça aos bolsos de
todos os motoristas e, apesar de toda a gritaria,
ainda favorecendo nas tarifas o transporte de cargas
em comparação com os transportes de passageiros.
Grandes mercados movimentando bilhões por ano,
porque aqui se gera muita renda e se recolhe muito
imposto, apesar de tudo. Mercados cativos, estão
nas mãos de grandes grupos de origem nacional e
das empresas estrangeiras, que são as mais poderosas
em cada um desses setores.
INVESTIDAS DESASTROSAS E
REPÚDIOS CLAROS. O QUE FOI
ANUNCIADO E NÃO FOI FEITO?
Sabemos que a instalação de uma feira livre
ou de um posto de combustível numa quadra residencial,
ou ao lado de uma escola, ou perto de uma
praça, é algo polêmico. Outros exemplos: as opera-
ções imobiliárias, as reconversões de prédios antigos,
as grandes obras viárias deixam cidadãos
descontentes, empobrecem muitos antigos moradores,
valorizam poucas propriedades e fazem a fortuna
de alguns grileiros chiques que obtiveram as
preciosas informações antes dos demais. Supermercados
e shopping centers, templos modernos, verdadeiros
focos das romarias nas nossas cidades,
tiveram localização e concepção inadequadas, exigindo
gastos específicos para os problemas com o
tráfego e os transportes, agravando os volumes de
esgoto não tratado, o gasto e o desperdício de eletricidade
etc.
Quando se trata de projetos de indústrias, de
grandes instalações, centrais de abastecimento de
gêneros, a abertura de novos trechos de estrada,
barragens e reservatórios, a localização de estações
de esgotos e de aterros de lixo, com mais razão,
ainda, prejuízos e incômodos são reais, como também
as oportunidades de receitas extraordinárias
para outros. Os chamados empreendedores, em
alguns casos, nem merecem esse nome, pois só conseguem
pressionar, assediar, como foi muito bem
lembrado na audiência pública sobre o projeto de
termelétrica em Americana, em 10 de agosto de
2000. Não conseguem, de fato, empreender, e não
por acaso foram repudiados. Mas nem todos foram
expulsos do jogo e, pior, chegam cada vez mais esses
anunciadores de projetos.
1. Em 1989, a Cesp, então estatal, dominada
pela máquina quercista, projetou duas piche-elétricas,
usinas termelétricas que queimariam os resíduos
viscosos das refinarias Revap, em São José dos Campos,
e Replan, em Paulínia.2 Em São José, o projeto
foi repudiado e, dois anos depois, foi vetada por um
artigo da Lei Orgânica Municipal a construção de
qualquer termelétrica no município. Por aqui, na
nossa região, a CESP foi derrotada duas vezes. Na
primeira, em 1992, após manifestações populares e
o envio de um repúdio formal de três prefeitos, Dr.
Tebaldi, de Americana, Pavan Júnior, de Paulínia, e
Pivatto, de Cosmópolis, o governador Fleury cancelou
a localização em Paulínia. Três meses depois, o
projeto foi anunciado para Mogi Guaçu.
Em Mogi Guaçu, na época um feudo peemedebista,
o governo estadual apostou que obteria,
enfim, a viabilidade política do projeto, o que era
uma exigência dos financiadores do Eximbank
japonês. Mas também não deu certo e, um ano
depois, em fins de 1993, foi proibida a instalação de
usina termelétrica por um projeto de lei de iniciativa
popular, aprovado pela Câmara Municipal de Mogi
Guaçu e vetado pelo prefeito Nelson Bueno, cujo
veto foi derrubado pelos vereadores.
2. Na mesma época, a mesma Cesp andou
projetando fazer uma nova barragem, com a finalidade
de regularizar o fluxo do Rio Jaguari, já que
sua piche-elétrica retiraria mais de 1.000 litros por
segundo, na altura de Paulínia e Cosmópolis.
Um
dos locais onde se anunciou a obra foi na Serra dos
Feixos, no Rio Camanducaia, distrito de Arcadas,
onde, nos anos 30, uma pequena hidrelétrica foi
feita pelo dono do curtume local. O lago previsto
chegaria praticamente na área urbana de Amparo.
Também foi abandonada a tentativa, após os protestos
locais e a derrota final da piche-elétrica.
3. Em 1995, começou outra novela, a do
lixão perigoso, em Piracicaba: o projetado aterro
industrial na localidade de Água Santa, próximo da
rodovia Piracicaba-Limeira, previsto para receber
resíduos perigosos de vários municípios do Estado –
despertando controvérsia, desconfiança quanto às
escassas garantias de operação e ao seu impacto
específico nas águas e subsolo da área –, teve seu
licenciamento aprovado em fins de 1996 pelo egrégio
Consema, incluindo-se o voto favorável do
então representante da Unicamp. O empreendedor,
Brunelli, aparentemente desistiu e perdeu a licença.
4. Na mesma época, ressurgiu o projeto dos
tempos da ditadura militar e dos interventores estaduais:
o projeto do prolongamento da navegação
fluvial do Tietê, entrando pelo Rio Piracicaba, e que
previa a construção de uma nova barragem com
eclusa logo acima do remanso do lago de Barra
Bonita. Hoje, só pode ser visto como insano e ilusionista,
além do óbvio: megalômano! O reservatório,
que começaria perto de Santa Maria da Serra, teria
40 km2 de superfície – na nossa medida caipira,
mais de 1,6 mil alqueires, ou três vezes maior do
que a represa moribunda de Americana, no Rio Atibaia,
a maior da nossa região.